'Transferência de risco ao setor privado apoiaria retomada'
Para a superintendente da Susep, com o Brasil no limite do ponto de vista de estímulos fiscal e monetário, isso seria possível nos seguros para desemprego, acidente de trabalho e grandes obras públicas
O Estado de S. Paulo - 15 de Outubro de 2020De 'musa da Previdência' e 'menina', como a chamou o então governador do Rio, Sérgio Cabral, ao comando da Superintendência de Seguros Privados (Susep), Solange Vieira, ainda se depara com o desafio constante de ter que, inúmeras e reiteradas vezes, provar sua capacidade profissional simplesmente por ser mulher. Isso não a impediu de galgar seu espaço. É a primeira mulher no comando da Susep e também foi precursora no setor de aviação, ao presidir a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) de 2007 a 2011. 'Espero que possamos em muito pouco tempo parar de contar como uma novidade que uma mulher se tornou presidente de um banco ou instituição', desabafa.
Com o Brasil no limite do ponto de vista de estímulos fiscal
e monetário, diante dos estragos da pandemia, Solange vê na transferência de
riscos do setor público para o privado uma forma de a indústria securitária
apoiar o processo de retomada no País. Para a superintendente da Susep, tal
avanço seria possível no seguro desemprego, no de acidente de trabalho e ainda
no de grandes obras públicas. Defende ainda avanço nas questões sociais e
ambientais. Dentre as iniciativas da reguladora, está uma revolução tecnológica
no sentido de dar mais transparência e concorrência ao setor, e ainda avalia a
criação de um 'índice verde'. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Com uma nova onda de coronavírus abatendo uma economia
mundial já cambaleante, qual a sua perspectiva para o Brasil??
Sou otimista com o Brasil e o mundo. Acho que a capacidade
do ser humano de se adaptar às mudanças é impressionante e tenho visto isso
agora mais do que nunca. Quem diria que em menos de uma semana todo o setor de
serviços, público e privado, estaria trabalhando em home office e isso daria
certo? Conheço empresas que demoram mais de quatro anos para implantar um
projeto de trabalho remoto e fizemos isso da noite para o dia. O setor de
seguros, do qual sou reguladora, se adaptou muito bem à mudança e temos
empresas pensando em manter mais da metade dos seus quadros dessa forma em
caráter permanente. Certamente teremos uma nova dinâmica de trabalho, mas isso não
quer dizer que será melhor ou pior, será diferente e novos modelos de negócio
irão surgir.
Em um contexto de piora externa, com o Brasil no limite
do ponto de vista de estímulos fiscal e monetário, como o mercado de seguros
impulsiona a retomada no País?
O seguro é fundamental para a economia e o desenvolvimento
dos negócios. Costumo dizer que não existiriam negócios sem o seguro, pois
ninguém transporta nenhuma carga sem seguro, nenhuma empresa se estabelece sem
segurar suas instalações e é necessário contratar seguros para os empregados. O
seguro está presente em quase tudo que fazemos. Com a pressão intensa da
questão fiscal, vejo no seguro uma grande alternativa para que o Estado possa,
por meio de uma regulação adequada, permitir que determinadas garantias, hoje
sob sua responsabilidade, possam se dar pelo seguro privado. Como exemplo disso
poderíamos citar o seguro desemprego, de acidente de trabalho e o de grandes
obras públicas. Enfim, Congresso e sociedade devem avaliar periodicamente todos
estes serviços e escolher o melhor caminho a seguir.
Nova Zelândia, Alemanha, Taiwan ou Noruega... alguns
países liderados por mulheres estão vendo relativamente menos mortes pela
covid-19 e a gestão da crise sanitária mais bem avaliada. Por quê?
Não sei se há uma correlação direta entre as experiências
desses países. Mas Japão, Cingapura e Coreia do Sul também são exemplos de
casos relativamente bem-sucedidos. Me parece que alguns países asiáticos, por
questões culturais, puderam implementar medidas de controles e rastreamento,
por exemplo, que o mundo ocidental tem desafios de implementação. Nova
Zelândia, Taiwan e Noruega talvez tenham condições geográficas que permitam o
fechamento de fronteiras com maior facilidade. E na Alemanha, até onde eu sei,
muito do êxito esteve associado às condições hospitalares e ao sistema de saúde
pública, que conta com uma infraestrutura diferenciada em relação ao resto do
mundo. De qualquer forma, acho difícil estabelecer um padrão de sucesso único.
Entendo que existem inúmeros fatores que influenciam no processo e precisamos
refletir sobre a perspectiva histórica e cultural de cada país para uma
avaliação ampla e adequada de quais foram os modelos bem-sucedidos e quais os
fatores que influenciaram. Estamos todos legitimamente aprendendo sobre o
problema e seus desafios, enquanto buscamos vencê-lo.
As questões sociais e ambientais ganharam destaque em
meio à pandemia, mas o Brasil não tem sido bem visto no exterior. O País
conseguirá sair maior nesse quesito? O que precisa ser feito?
Assim como o resto do mundo, precisamos avançar em questões
sociais e ambientais. Temos que trabalhar para isso. E entendo que, mais uma
vez, a perspectiva histórica é relevante para observar como temos avançado. O
mundo está cada vez mais interligado, temos relação comercial forte com
diversos países e necessitamos de investimentos externos. Não temos a opção de
não avançar nesses pontos. Precisamos cada vez mais ter a consciência que o
desenvolvimento presente de nossa sociedade não pode prejudicar as gerações
futuras. Assim poderemos construir o equilíbrio sustentável entre gerações. A
atenção dos investidores aos riscos relacionados a ESG (meio ambiente, social e
governança, na sigla em inglês) vem se consolidando também no Brasil. Isso é
parte de um processo, assim como quando falamos de questões da participação de
minorias e o papel feminino no mercado de trabalho. Entendo que podemos dar
nossa contribuição para esse amadurecimento do mercado e da sociedade.
Como essa questão tem sido pautada no mercado de seguros?
Estamos avançando. Aprovamos recentemente a norma de
prevenção à lavagem de dinheiro e ao terrorismo e a Resolução 382, que
estabelece critérios de conduta para os agentes do mercado - ambas representam
avanços no diálogo com a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Na Susep, passamos a integrar iniciativas como o Comitê Consultivo do Programa
de Finanças Verdes do Prosperity Fund (Reino Unido) no Brasil; o objetivo é
desenvolver grandes projetos relacionados a finanças verdes e gerar mais
oportunidades de negócios sustentáveis entre os dois países. Estamos avaliando
lançar um índice de sustentabilidade verde para as nossas seguradoras e
trabalhando para que o setor tenha mais transparência e informação disponível
para o consumidor. Há também uma frente de mudanças que procura reduzir as
barreiras à entrada de novas seguradoras, incentivando a concorrência no setor.
As medidas de isolamento social, necessárias para
combater a propagação da covid-19, também prejudicam os avanços na igualdade de
gêneros. Quais impactos a sra. vê no Brasil e na Susep?
Todo processo de crise tende a acirrar a competição e a
busca de eficiência. Mas, sendo a crise um fato, ela pode ser catalisada de
forma a gerar resultados construtivos para a sociedade. Para isso, é
fundamental que os diversos agentes tenham condições mínimas de sobrevivência
equivalentes, de modo que o processo competitivo possa gerar uma evolução que
resulte em ganhos de produtividade e desenvolvimento econômico no pós-crise,
sem agravar as desigualdades. O auxílio que o governo proporcionou aos mais
vulneráveis, pessoas físicas e às pequenas e médias empresas procurou minimizar
estas desigualdades, de modo a permitir que todos possam ter chances
equivalentes dentro do processo. Na Susep, vivenciamos os primeiros impactos
com atenção. Desde que cheguei, compreendi que a tecnologia seria o catalisador
dos avanços necessários.
Temos evoluído o número de mulheres no mercado de trabalho
ao longo do tempo.Em 1980, éramos algo em torno de 27%, na década de 90 passou para
de 35% e agora estamos em cerca de 45%.Mas as condições salariais ainda são
muito desiguais.
Tivemos, pela primeira vez na história, uma mulher no
comando de um grande banco de Wall Street, com a eleição de Jane Fraser para
presidir o Citi. Mas, para isso, foram vencidas batalhas difíceis. Essa luta
tem sido vitoriosa no mercado Brasil, em especial no setor público? O que
falta?
Temos evoluído o número de mulheres no mercado de trabalho
ao longo do tempo. Em 1980, éramos algo em torno de 27%, na década de 90 passou
para de 35% e agora estamos em cerca de 45%. No setor público, o número de
mulheres já ultrapassou o número de homens, representando 59% da força de
trabalho em 2017, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Mas as condições salariais ainda são muito desiguais e os maiores salários se
concentram entre homens.
Além da questão salarial, qual outra ação urgente?
Entre outras medidas, acho fundamental que tenhamos
políticas que permitam que as mulheres tenham onde deixar seus filhos para
trabalhar. É importante que possamos sair tranquilas para o trabalho sabendo
que nossos filhos estão sendo bem assistidos. Muitas mulheres interrompem sua
vida profissional porque não têm onde deixá-los. Esse problema se acentua ainda
mais nas famílias de baixa renda. Investir em nossas crianças, na minha visão,
é também permitir a redução da desigualdade entre gênero no mercado de
trabalho. Estamos em 2020 e temos a primeira mulher presidente de um grande
banco de Wall Street, eu fui a primeira presidente mulher na Susep e no setor
de aviação. Espero que possamos em muito pouco tempo parar de contar como uma
novidade que uma mulher se tornou presidente de um banco ou instituição.