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Fraude a planos de saúde chega ao Poder Judiciário

FenaSaúde contabiliza um aumento de dez vezes no número de queixas-crime e ações cíveis de seguradoras contra fraudes, nos últimos quatro anos

Valor Econômico - 09 de Fevereiro de 2024

Os planos de saúde viram nos últimos dois anos disparar um novo tipo de fraude: o “reembolso sem desembolso”. No esquema, clínicas se apropriam de dados dos segurados para pedir ressarcimento de serviços em valores exorbitantes, causando prejuízos em alguns casos milionários. A prática tem enchido escritórios criminais e começa a chegar ao Judiciário.

A Federação Nacional da Saúde Suplementar (FenaSaúde) contabiliza um aumento de dez vezes no número de queixas-crime e ações cíveis oferecidas por seguradoras contra fraudes nos últimos quatro anos. O número tem praticamente dobrado ano a ano. Em 2023, foram contabilizadas mais de duas mil ações.

Estudo da Associação Brasileira dos Planos de Saúde (Abramge) chegou ao valor de R$ 7,4 bilhões em fraudes em reembolsos nos últimos três anos. Em um outro, realizado pela consultoria EY em parceria com o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), o valor seria de até R$ 34 bilhões com fraudes e desperdícios só em 2022 - equivalentes a 12,7% da receita da saúde suplementar no Brasil.

Segundo Vera Valente, diretora-executiva da FenaSaúde, o enfrentamento das fraudes se tornou fundamental para garantir a sustentabilidade do setor. “As práticas fraudulentas comprometem a operação dos planos de saúde e causam impactos financeiros expressivos”, diz. Ela acrescenta que as seguradoras têm investido em comunicação para conscientizar os usuários e em investigar os fraudadores como forma de coibir a prática.

Alguns golpes são aplicados por quadrilhas organizadas de forma complexa e podem atingir valores elevados. Uma das denúncias realizadas pela FenaSaúde resultou na “Operação Esculápio”, lançada pela Polícia Civil de São Paulo em 2023 para investigar uma empresa de eventos que realizou 2,3 mil pedidos de reembolso de procedimentos para seus funcionários a sete operadoras, totalizando notas fiscais de R$ 5,4 milhões.

Em 2022, uma denúncia da FenaSaúde ao Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo, descreveu um esquema envolvendo 179 empresas de fachada, 579 beneficiários e 34 mil pedidos de reembolso totalizando R$ 40 milhões. O caso envolvia cinco operadoras de saúde.

As fraudes têm se tornado cada vez mais sofisticadas, diz Rodrigo Fragoso, do Fragoso Advogados, que representa a FenaSaúde e várias operadoras de saúde, acumulando mais de 500 casos do tipo em seu escritório. Alguns deles envolvem várias seguradoras, que têm atuado em conjunto fazendo cruzamentos de dados para identificar fraudadores em série, que afetam vários grupos empresariais.

“Hoje o que se vê é um nível de sofisticação que antes só se via nas fraudes ao setor bancário, e que agora chega na saúde suplementar. O setor bancário aprendeu muito na área de segurança corporativa”, afirma o advogado.

Assim como no setor financeiro, diz, na área de saúde a chegada da tecnologia também impõe novos desafios. Um problema novo decorre da chegada da telemedicina, que permite forjar atendimentos com maior facilidade e favorece as fraudes. Ele conta de um caso de um fraudador que arregimentou diversos médicos recém-formados e lançava dezenas de teleatendimentos simulados ao mesmo tempo. “A telemedicina deve ser usada com parcimônia, o médico deve estar presente”, afirma o advogado.

Rodrigo Fragoso identificou alguns casos de crime organizado, com um conjunto de pessoas agindo em uma lógica empresarial. A organização era dividida em um núcleo médico, que coletava dados dos pacientes e forjava pedidos de reembolso, um núcleo administrativo, que contratava o seguro com documentos falsos, e um núcleo financeiro, que abria contas em bancos virtuais.

Julia Sandroni, sócia do Moraes Pitombo Advogados, diz ter identificado um aumento exponencial no número de denúncias de fraudes a planos de saúde, principalmente, nos últimos dois anos. Os casos se concentram na modalidade chamada “reembolso sem desembolso”, na qual a seguradora paga por um serviço que não foi pago, e às vezes nem mesmo ocorreu.

O procedimento padrão do “reembolso sem desembolso” é clínicas se passarem por credenciadas sem ser. Na hora de prestar o serviço pedem do cliente login e senha do plano e firmam um contrato de “cessão de direitos de reembolso”. De posse dos dados do paciente junto ao plano, a clínica se passa pelo usuário e pede reembolsos em serviços em série, muitos deles sequer prestados. Em alguns casos a clínica altera os dados bancários do paciente para receber os valores em seu lugar.

A advogada conta também situações em que as clínicas se organizam em conjunto com “financiadores”, que apresentam documentos forjando empréstimos que simulam o pagamento do serviço. Algumas vezes é possível identificar clínicas que foram organizadas especificamente para a prática de crimes. “Em alguns casos percebemos que a clínica foi organizada com esse objetivo, e o caso se enquadra como organização criminosa”, diz a advogada.

Como o tema ainda é recente, há poucos precedentes do Judiciário. Muitos casos estão sendo resolvidos por “acordo de não persecução penal”, admitida no caso de estelionato, encerrando o processo com a confissão do crime e um compromisso de reparação.

Segundo Rodrigo Fragoso, há algumas condenações e alguns precedentes da Justiça que reconhecem a fraude, mas a discussão é recente. Um raro precedente sobre o caso do “reembolso sem desembolso” foi proferido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em novembro de 2022 (REsp 1959 929). A decisão da 3ª Turma, relatada pelo ministro Marco Aurélio Bellizze, concluiu pela ilegalidade do contrato de cessão de direitos de reembolso.

“Se o usuário do plano não despendeu nenhum valor a título de despesas médicas, mostra-se incabível a transferência do direito ao reembolso, visto que, na realidade, esse direito sequer existia. Logo, o negócio jurídico firmado entre as recorridas (clínica e laboratório) e os segurados da recorrente - cessão de direito ao reembolso sem prévio desembolso - operou-se sem objeto, o que o torna nulo de pleno direito”, diz o acórdão do STJ.