Pandemia agrava saúde mental de profissionais
O Valor Econômico relata que a pandemia agravou outra pandemia que a sociedade já enfrenta há 30 anos, mas que vinha sendo silenciada por causa da estigmatização: a da saúde mental. “A gente tem a oportunidade de agora realmente escutar”, afirma Leandro Pereira Garcia, gerente sênior de gestão de saúde populacional na Amil /UHG. O médico participou de uma Live do Valor sobre o tema no último dia 29.
Uma pesquisa recente feita pela Fundação Dom Cabral (FDC) e
Talenses Group, obtida com exclusividade pelo Valor, indica que a pandemia
prejudicou a saúde mental de 73,8% dos 573 profissionais entrevistados. Do
total, 40% ocupam posições gerenciais e 20,5% são diretores, VPs, C-Level ou
conselheiro. Entre as mulheres (que são 45% dos entrevistados), a pandemia
prejudicou mentalmente 80,92% delas.
O indicador também foi alto entre os mais jovens. Na geração
Z (nascidos a partir de 1991), 80,65% disseram ter sido afetados. “Uma primeira
explicação é que as gerações mais novas têm pouca autonomia, recebem as
atividades para fazer e há pouco espaço para colocar intencionalidade, seu
próprio ponto de vista”, afirma o coordenador da pesquisa Paul Ferreira,
professor de gestão estratégica e diretor do Centro de Liderança da Fundação
Dom Cabral. Isso vai contra o que boa parte dessa geração espera da carreira.
“Os mais jovens aceitam o trabalho por algo além do salário, tem a questão do
propósito, de ter a oportunidade de fazer ‘o que eu faço melhor’, de impactar a
sociedade. Essas questões estão afetadas pela pandemia, por não haver
interações sociais”, disse.
As mulheres, por sua vez, têm a sobrecarga das tarefas
domésticas e do cuidado com os filhos, que ainda hoje recaem sobre o sexo
feminino. “Percebemos que a produtividade das mulheres cai em relação a dos
homens quando se tem uma ou duas crianças em casa”, afirma Luiz Valente, CEO do
Talenses Group. “Em paralelo, notamos que mesmo com uma percepção semelhante
sobre a mudança no nível de cobrança por parte dos gestores entre homens e
mulheres, uma parcela maior delas se sente pressionada a trabalhar mais para
mostrar sua produtividade aos respectivos gestores. Aspectos como esses podem
influenciar e impactar de diversas maneiras a vida das mulheres de forma
negativa.”
É um ambiente que parece piorar algo que já não estava bom.
Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) obtidos em um levantamento do ano
passado mostram que o Brasil é o país mais ansioso do mundo e o quinto mais
depressivo. “Com esse cenário, é urgente discutirmos o papel das organizações
sobre o tema e as ações necessárias em prol da saúde mental dos colaboradores”,
afirma Carlo Pereira, diretor-executivo da Rede Brasil do Pacto Global da ONU.
Junto com a Sociedade Brasileira de Psicologia e a InPress
Porter Novelli, a Rede Brasil do Pacto Global lançou recentemente o movimento
#MenteEmFoco. “É um espaço gratuito para as empresas levarem as melhores
práticas para outras companhias replicarem e gerar mais conhecimento nesse tema
tão importante”, diz Pereira. A iniciativa já conta com a participação de
Ambev, Unilever, Hospital Sírio-Libanês, UPS, Grupo Conexa, Mapfre e Afya
Educacional.
Ainda são poucas as empresas que endereçam o tema da saúde
mental no Brasil: 18%, segundo Pereira. Mas algo, de fato, já está sendo feito.
A Bee Touch, uma startup fundada em 2012 que oferece serviços de avaliação
psicológica para empresas, registrou um aumento de avaliações durante a
pandemia de 38%. “Mais empresas estão utilizando a plataforma para avaliar,
predizer e monitorar os riscos psicossociais entre os seus colaboradores”,
afirma Ana Carolina Peuker, CEO e fundadora da Bee Touch. Para a empreendedora,
hoje há uma maior conscientização sobre o impacto da saúde mental na força
produtiva e isso aumentou a demanda pelo monitoramento digital de saúde mental.
“A crise pandêmica colocou uma lupa em problemas psicológicos que já existiam
entre os colaboradores, mas que foram exacerbados pela crise. Hoje, atendemos
clientes com diferentes graus de maturidade, desde os inativos, que não sabem
quais ações tomar quanto às questões de saúde mental, até aqueles que já estão
numa posição reativa, buscando agir.”
Na Astellas Farma Brasil, falar de qualidade de vida está na
pauta há alguns anos e, desde 2018 a companhia focou no pilar de saúde mental
com o lançamento do “Origami-se”. Laís Mastantuono, diretora de recursos
humanos da farmacêutica, diz que se trata de um programa de gestão emocional
que tem como objetivo desmistificar o tema saúde mental e trazer para discussão
tópicos considerados tabus, como ansiedade e depressão. Além disso, apresenta
aos funcionários ferramentas de autoconhecimento e gestão do estresse. “O maior
benefício observável do programa foi, sem dúvida, a criação de um ambiente
ainda mais aberto e leve, uma maior conexão entre nossas pessoas e um maior
senso de pertencimento, gerando ainda mais engajamento”, afirma Laís.
Desmistificar o tema da saúde mental também foi o objetivo
do feriado corporativo decretado pela SAP globalmente no último dia 27 de abril
para seus mais de cem mil funcionários. “A proposta foi chamar atenção para a
necessidade de se manter atento à saúde mental e passar uma mensagem clara
sobre a necessidade de realizar um balanceamento saudável entre vida pessoal e
profissional”, afirma Fernanda Saraiva, diretora de recursos humanos da SAP
Brasil. “Esse equilíbrio se faz ainda mais necessário diante de um momento
desafiador como o atual, e quisemos reforçar a necessidade de falar abertamente
sobre o tema no ambiente corporativo, sem estigmas e pré-julgamentos.”
Em pesquisa interna global, a empresa constatou que um terço
de seus funcionários estava passando por níveis de estresse superiores aos
níveis de satisfação no trabalho. A multinacional tem um programa de saúde
mental chamado “Mental Health Matters” desde 2019. O objetivo é justamente
criar um ambiente seguro e livre de preconceitos para se falar abertamente de
doenças mentais, prevenção e bem-estar na área de saúde psicológica.
Oferecer um ambiente psicologicamente seguro é fundamental
para prevenir questões de saúde mental entre os funcionários. “O quão seguro
psicologicamente é o ambiente de trabalho para permitir que o indivíduo diga
que está sofrendo assédio moral, que seu sofrimento é devido a coisas que
acontecem no ambiente de trabalho?”, questiona Lisiane Bizarro, da Sociedade
Brasileira de Psicologia.
Para a especialista, se há abertura e acolhimento para o
diálogo, há maior chance de a queixa ser feita pelo funcionário e endereçada de
maneira coletiva pela empresa. “Se houvesse resolução, talvez muitas coisas
fossem evitadas. Mas se isso não é bem recebido, a pessoa vai acomodando aquele
sofrimento, começa a usar medicação. É um cenário que gera uma preocupação
diária do que ela vai enfrentar, e vai minando a vida da pessoa. Afeta sua
tomada de decisão em várias esferas.”
Ana Carolina Peuker, da Bee Touch, diz ter observado na
plataforma da startup dados “muito preocupantes” relacionados com alta
prevalência de doenças mentais como ansiedade e depressão, abuso de drogas -
álcool principalmente - e medicamentos de uso controlado, como ansiolíticos e
antidepressivos. Transtornos do sono também foram comuns nos últimos
mapeamentos realizados. “O local de trabalho pode ser protetor, oferecendo um
ambiente seguro psicologicamente, para que todas as pessoas possam falar
abertamente sobre quem elas realmente são e o que sentem”, afirma Lisiane.
A construção de um ambiente seguro psicologicamente passa
diretamente pelo exemplo da liderança. Carlo Pereira faz um comparativo ao
mencionar a queda relevante dos acidentes de trabalho nas últimas décadas. “As
empresas com caráter industrial têm o minuto para falar de segurança no
trabalho antes de qualquer reunião”, diz. “Quando o CEO vai abrir um evento,
ele sempre fala de segurança no trabalho. Isso foi internalizado de maneira
efetiva na empresa. É um assunto trabalhado o tempo todo. Precisa ter isso para
a saúde mental.” Para ele, a mensagem tem que vir da alta liderança. “Tem que
ter o CEO comprando essa questão de maneira definitiva, passando essa mensagem
para a empresa.”
A solução para as questões de saúde mental no ambiente
organizacional é complexa. “Quando se pensa em qualquer doença e estado de
saúde, não se pode pensar de forma fragmentada, tem que se pensar de forma
sistêmica”, diz Garcia da Amil. “As doenças têm múltiplos desencadeantes, e com
a saúde mental não é diferente.”
O médico explica que as condições que levam a uma boa ou má
saúde mental vão desde a vida intrauterina e a infância até o trabalho, levando
em conta o propósito pelo qual se exerce a atividade, a carga de trabalho e a
segurança financeira, entre tantas outras razões.
Para ele, quando se fala em abarcar a saúde mental, é
preciso pensar em diversos aspectos: promoção e prevenção, identificação rápida
e recuperação de quadros de agravo mental e inclusão. Para Garcia, pensar
apenas em ações pontuais de bem-estar como mindfulness e ginástica não é
suficiente. “O mindfulness é fantástico, mas não deve ser aplicado sozinho,
como solução total”, diz.
“Ações que foquem o sistema de trabalho como um todo, uma
liderança acolhedora, um ambiente promotor do diálogo, de confiança tanto para
o CEO como para quem está dirigindo o ônibus. Quando a gente pensa na estrutura
social do trabalho como um todo os resultados tendem a ser melhores. Não é que
uma coisa seja contra a outra. Mas não se pode ficar com a cereja do bolo e
esquecer do bolo.”