Artigo: A modernização do mercado de seguros
Por Marcella Hill, Jaqueline Suryan e Leonardo Sakaki,
respectivamente, líder, sócia e associado da Área de Seguros e Resseguros do Campos
Mello Advogados, no Valor Econômico
O ano de 2020 foi singular em todos os sentidos. Enfrentamos
uma situação global de pandemia, que determinou procedimentos de quarentena e
trouxe tantos transtornos e ansiedades como nunca havia sido presenciado pela
geração contemporânea. Mesmo diante do cenário caótico, os órgãos reguladores
do setor de seguros continuaram seus trabalhos, atuando ativamente na expedição
de normas que têm expressado um aparente intuito de modernizar o mercado, indo
ao encontro dos princípios estabelecidos pela Lei da Declaração de Direitos de
Liberdade Econômica. Diversas normas importantes foram publicadas ao longo de
2020, das quais destacamos algumas que já estão movimentando o setor como um
todo.
A primeira delas foi a criação do sandbox regulatório, um
ambiente experimental no qual determinadas empresas poderão atuar, em um
período de até três anos, com um menor peso regulatório e uma maior
flexibilidade para inovar. O sandbox se mostra de extrema importância ao
mercado segurador, já que abre espaço para a oferta de novos produtos e
tecnologias que não seriam possíveis ante ao rigoroso ambiente regulatório de
seguros, beneficiando tanto o mercado quanto seus clientes.
Nessa mesma linha, foi publicada norma com a segmentação das
sociedades reguladas do setor, que foram divididas em quatro níveis, levando-se
em conta a participação no mercado de acordo com o volume de prêmios e/ou
provisões técnicas. Essa divisão servirá como critério para enquadramento para
fins de regras de capital e solvência, o que também possibilitará uma redução
importante no peso regulatório para empresas de pequeno e médio porte,
favorecendo a entrada de novos players ao mercado e a diversificação dos
produtos ofertados.
Outra regulamentação importante foi a que estabelece os
princípios a serem observados nas práticas de condutas adotadas pelas entidades
no relacionamento com o cliente, com princípios a nortear o tratamento dado a
eles, desde o desenvolvimento dos produtos até o fim do ciclo de vida de cada
uma das opções.
A mesma norma prevê a possibilidade de o órgão fiscalizador
atuar como cliente oculto, sem necessidade de aviso prévio, podendo pesquisar,
simular e testar, de forma presencial ou remota, todo o processo de
contratação, distribuição, intermediação das operações das entidades reguladas.
Apesar de ser esse um mecanismo controverso, em especial diante da generalidade
de suas disposições, o que pode ser questionado face aos princípios
constitucionais da legalidade, impessoalidade e publicidade aplicáveis à
administração pública, não deixa de ser condizente com as normas gerais de
defesa do consumidor e totalmente em linha com as práticas internacionais.
Outra grande inovação foi a norma com os novos critérios e
regras para operação de seguros do grupo patrimonial, tratando de forma mais
fluida e genérica os seguros compreensivos, lucros cessantes, riscos de
engenharia e outros. Na mesma seara, já agora no início deste ano, foram
publicadas as regras gerais para seguros de danos, focada em seguros
massificados, mas que podem ser utilizadas também para produtos que tratam de
grandes riscos. Esse normativo traz disposições mais atuais e condizentes com a
evolução dos produtos do mercado, como regras de cancelamento de apólice
condizentes com as diferentes formas de períodos de cobertura atualmente
existentes, como os seguros com cobertura intermitente e a esperada norma sobre
seguros de grandes riscos, trazendo apenas regras gerais e principiológicas
para nortear o contrato, deixando espaço para as partes negociarem as cláusulas
e as condições do seguro.
Essa última norma, além de impactar diretamente as
seguradoras, também afetará todas as relações do mercado, incluindo as cessões
em resseguro, já que cada seguro de grandes riscos poderá ser único e
personalizado, sem submissão ao regulador, exigindo dos segurados um
conhecimento e assessoria adequados no momento da contratação Importante
ressaltar que as regulamentações do setor de seguros são, por definição, normas
complementares e específicas para o mercado, nunca fugindo à observância
obrigatória do princípio da legalidade.
Da mesma forma, uma lacuna regulatória não pode ensejar em
uma ilegalidade por omissão de determinada norma, como estamos vendo em alguns
comentários que circulam pelo mercado. Ou seja, as normas publicadas tidas como
mais abertas não autorizam os entes do mercado a ignorar as demais normas,
sejam leis, decretos etc, pelo simples fato de não haver mais uma previsão
expressa em regulamentação permitindo ou vedando determinado ato.
Como exemplo, citemos a norma mais recente de seguros de
danos que, diferentemente da anterior, não estabelece expressamente que os
seguros não podem cobrir atos dolosos dos segurados, o que sequer precisaria
estar estabelecido em regulamentação, uma vez que tal vedação é expressamente
prevista no Código Civil.
Por fim, ressaltamos a nova regra que possibilita a cessão
em resseguro diretamente por entidades de previdência complementar e por
operadoras de planos de saúde. Essa norma, apesar de, ao nosso ver, ser
benéfica ao mercado, pode ser tida como ilegal por inovar no âmbito jurídico de
forma diversa da definição (e não conceito) de cedente prevista em lei. Ou
seja, seria necessária a alteração legal, seja para deixar a definição de
cedente mais genérica, seja para incluir essas entidades como cedentes, a fim
de possibilitar uma cessão direta por tais sociedades em resseguro, em
observância - novamente - ao princípio da legalidade.
De uma forma ou de outra, quaisquer críticas que se possam
ter com relação ao conteúdo das normas publicadas, fato é que os órgãos
reguladores do setor vêm priorizando inovações no setor de seguros,
compatibilizando as regulamentações às operações globais e possibilitando a
expansão do mercado. Cabe agora aos players do mercado aproveitarem essas
inovações para oferecer produtos mais interessantes, distintos e modernos, o
que beneficiará toda a sociedade.