Artigo: Por um microsseguro inclusivo
O microsseguro amplia a rede de proteção das pessoas, mitigando os riscos de queda abrupta na pirâmide social
O Estado de S. Paulo - 24 de Setembro de 2020Por Solange Beatriz Palheiro Mendes, diretora de Relações de Consumo e Comunicação da CNseg, no Estadão.com
O debate sobre formas
de reduzir as vulnerabilidades dos mais pobres é rico em propostas, ideológico
por vezes, mobilizador sempre, mas pouco efetivo na prática. Os números da desigualdade social falam por
si. É nesse cenário que o microsseguro se sobrepõe como resposta assertiva em
todo o mundo, ao ampliar a rede de proteção das pessoas, mitigando os riscos de
queda abrupta na pirâmide social, em razão de
infortúnios aos quais todos estão sujeitos (morte, invalidez, acidentes
pessoais, destruição da moradia etc.).
No Brasil, após anos de intensos debates entre mercado,
especialistas estrangeiros, Congresso Nacional e o órgão de supervisão de
seguros, a regulamentação do microsseguro saiu no começo de 2012, com seis
normativos sobre a matéria (Circulares Susep nos 439 a 444) e enormes
expectativas de expansão. Desde então, o
microsseguro avança, contudo, aquém de seu potencial no País, cercado de
escalas ou turbulências em seu plano de voo nestes oito anos de mercado. Até aqui, conviveu com uma severa crise
econômica (2015/2016), taxas de crescimento do PIB baixas nos anos seguintes e,
agora, uma nova recessão provocada pela pandemia e seus danos sobre empregos,
renda e contração de toda atividade econômica.
Não é fácil crescer em cenário econômico recessivo, todos
sabem. Mas é preciso reconhecer outros fatores que retardam a evolução do
microsseguro: desconhecimento de seus benefícios, renda, desconfiança e
ausência de oferta, comunicação, e programas assertivos de educação em seguros.
É no campo da regulação, em especial, que há contribuições
relevantes à expansão do microsseguro. Hoje, por exemplo, o microsseguro e os
produtos massificados travam uma velada concorrência, o que, na prática, faz
com que a arrecadação do primeiro pule para o outro. Essa convergência entre
esses segmentos, notória, está entre os alvos de aperfeiçoamento do marco
regulatório do microsseguro planejados pela Superintendência de Seguros
Privados (Susep).
A ideia é colocar cada coisa em seu lugar. Hoje, ainda
existem produtos de baixo tíquete e capitais similares ao do microsseguro sem
serem convertidos, ou seja, permanecem na linha de apólices tradicionais. Esse
fato talvez indique que ainda haja oportunidade para aprimorar o marco
regulatório do produto, conferindo-lhe mais flexibilidade, incluindo novas
coberturas e redação ainda mais simplificada dos seus bilhetes.
O microsseguro difere dos seguros tradicionais
principalmente por ter limites máximos de garantia, capitais segurados e/ou
benefícios restritos a um teto, o que implica menor valor do prêmio cobrado,
além de estar condicionado a um menor prazo para pagamento das indenizações (10
dias corridos em contraste com os 30 dias do seguro tradicional) e de poder ser
vendido em canais alternativos como correspondentes financeiros, varejistas,
entre outros. Danos pessoais e materiais são coberturas típicas do
microsseguro. Hoje, há apenas quatro microsseguradoras, mas grande parte da
receita ainda está na carteira de seguradoras convencionais que obtiveram
autorização para atuar nesse segmento.
Olhando no entorno, o avanço do Sandbox Regulatório da
Susep e a revisão das regras de capitais proporcionais são outras ações que,
quando se materializarem e de forma indireta, poderão também ajudar o
crescimento do microsseguro. No primeiro caso, porque as insurtechs poderão
ampliar a cobertura do público-alvo do microsseguro, com as soluções inovadoras
a serem testadas nos próximos anos que poderão ser incorporadas ao modelo de
microsseguradora. Do mesmo modo, os recursos exigidos para organizar as
seguradoras, em um novo modelo de faixas de capitais proporcionais, tendem a
diminuir e ampliar o interesse no segmento de microsseguro.
O aprimoramento da educação financeira da população é outro
capítulo chave. As pessoas precisam se conscientizar da perspectiva de
encolhimento do papel social do Estado brasileiro, que hoje ainda é
generoso. As virtuais lacunas em espaços
de proteção social abrem flancos para o seguro como um todo, incluindo-se o
microsseguro. Não se pode esquecer que a economia de escala, no caso do
microsseguro, é fundamental para atrair os corretores de seguros, principal
canal de distribuição. As tecnologias digitais serão estratégicas e táticas
nessa adesão dos corretores, hoje inconsistente. O que não quer dizer que
continuam bem-vindos os correspondentes financeiros e o corretor de
microsseguro, profissional com formação simplificada em relação ao corretor
tradicional.
Por fim, vale lembrar que as mudanças nos paradigmas de
convívio social, trabalho e circulação certamente trarão novas demandas por
coberturas que poderão ser atendidas pelo microsseguro, desde que, repito, haja
flexibilidade regulatória suficiente para adaptação dos produtos. O exemplo
mais notável de produto que promete ganhar espaço e ser reformatado para
atender à nova realidade é o seguro residencial. Esse ramo atualmente só pode
ser vendido nas lojas de varejo se estiver formatado como microsseguro e, para
se adaptar, precisará contar com maior flexibilidade regulatória.
O vento muda de direção e fatos extraordinários acontecem
com alguma frequência, como crises, baixo crescimento e agora a pandemia, mas
existe uma perspectiva real de expansão de um seguro verdadeiramente inclusivo
nos próximos anos e um encontro marcado com um público de milhões de
consumidores aptos a estar protegido pelo seguro.